José Anjos





REVELAÇÃO

(do latim revelatio, -onis)
s. f.
1. Acto ou efeito de revelar ou de revelar-se.
2. Coisa que é revelada.
6. Inspiração; conhecimento súbito.
7.  Acção de revelar uma película sensível, um negativo ou uma cópia fotográfica.
8. Negativo ou cópia fotográfica revelada.




I
Branco


- Jorge, pára com isso! Já te disse que é impossível arranjá-la! Foi desta que pifou de vez!
- Ó Maria, espera um bocado que já vais ver que eu consigo........ - e mergulhou novamente a cabeça por entre os fios que saíam das entranhas já gastas do aparelho.
- És mesmo teimoso, homem. Ainda vais apanhar um choque daqueles....tira daí as mãos! Não vês que ela morreu? Nada dura para sempre! Nem os animais, nem as pessoas...nem mesmo a D. Justina do Sossego aqui do andar de cima, apesar dos anos agarrada à cama e daqueles gritos nocturnos...... - levou as mãos à cabeça em sinal de desespero - e muito menos essa televisão velha e baratucha, que já deu o que tinha a dar. As coisas também chegam ao fim da sua vida!
- Ah! Eis um milagre então! - respondeu ele com um sorriso triunfante. E afastou-se do ecrã do televisor que, com esforço evidente, se acendia novamente. Aos poucos a imagem do rosto narigudo do Júlio Isidro recuperava da escuridão absoluta para um cinzento viçoso. Ouviu-se um chiado desafinado e depois o som granuloso da banda que acompanhava o programa.
Maria não conseguiu disfarçar um esgar de desapontamento - "Confesso que estava na esperança que esse monstrengo já não tivesse arranjo. Assim teríamos que comprar uma daquelas mais modernas, com cores e telecomando! Estou cansada de ver tudo a preto e branco.....especialmente a novela, às vezes nem consigo distinguir bem as personagens! E tu sabes como eu gosto da novela!"
- "Pois... mas esta está arranjada! E é para durar. Sabes que não temos dinheiro para gastar nessas coisas. O mês passado recebi ainda menos encomendas do que esperava. Parece que as pessoas andam tão ocupadas que já nem têm tempo para se sentarem como antigamente. Isto não está fácil, Mariazinha..."
Maria sabia que ele tinha razão e que não valia pena insistir. Encolheu os ombros e voltou para a cozinha, resignada. Guardou em segredo o desejo de ver o aparelho finar-se de vez, com sorte num dos próximos dias.
Corria o Natal de 1975. Viviam-se tempos difíceis mas calorosos na casa de Maria e Jorge Vicente. Não tinham filhos, mas o tempo, a idade e a dificuldade tinham, entre tanto e tão pouco, arrasado essa possibilidade. Tornou-se num sonho desfeito em angústia sempre presente, apenas esmagada ao longo dos anos pelas rotinas e cumplicidades que partilhavam diariamente. 
Mas no Natal tornava-se mais complicado preencher o vazio que os unia num desgosto surdo. Eram só os dois. E a televisão que lhes enchia o serão. Mais ninguém. Assim, cada um fazia tudo o que podia para distrair e mimar o outro com os presentes e surpresas possíveis. E apesar da tristeza de não terem filhos foram aprendendo a ser felizes na companhia um do outro, com a ternura e carinho que sentiam um pelo outro. No amor que viviam um com outro. 
No Natal, o apartamento exíguo mas confortável em que viviam no bairro de Campo de Ourique enchia-se de luz e velas, enfeites e soberbos manjares confeccionados com o talento e dedicação que Maria Vicente tinha tanto orgulho em exibir. Era óptima cozinheira e uma dona-de-casa com super-poderes. Fazia questão de ter sempre tudo impecável e de dar a todas as divisões o seu toque pessoal: uma flor, uma fotografia, os tecidos e a mobília que escolhia, a iluminação, de noite e de dia, tudo era estudado e disposto para tornar o ambiente do lar o mais confortável e quente possível. Como Jorge lhe costumava dizer, ela era «a mulher mais especial que um homem podia desejar». Ela sabia bem disso e gostava de o agradar sempre que podia e fazia-o, aliás, de forma indisfarçável. 
Jorge era estofador de profissão, mister a que se dedicava desde os seus doze anos, idade com que tinha começado a trabalhar como ajudante na loja do seu tio Alfredo. Com o passar dos anos foi ganhando perícia no que fazia e cada vez eram mais os clientes que o recomendavam e lhe encomendavam trabalhos. Até que o seu tio Alfredo, assombrado como um abutre faminto pelas sequelas de febre reumática que tinha tido em pequeno, acabou por sucumbir ao desgaste do coração e morreu de insuficiência cardíaca em 1971. 
Jorge ficou à frente da loja e desde então que trabalhava sozinho de sol a sol para dar vazão a todas as encomendas. Quando o negócio afrouxava, aproveitava o seu jeito natural para fazer uns biscates como electricista ou canalizador. Era um homem duro e resiliente. Maria dava-lhe algum apoio na organização da escrita comercial - Jorge era um desastre nessas lides - mas raramente se deslocava à loja. 
O dinheiro que entrava dava para pagar as despesas e viver com alguma segurança, desde que fossem regrados e se mantivessem preocupados em amealhar algumas poupanças. Eram felizes na sua modéstia. E o Natal era a única época do ano em que se permitiam sair da severa rotina e cometer algumas "excentricidades": um cabrito para o jantar, uma boa garrafa de vinho tinto e as mínimas mordomias e iguarias com que todos, pobres ou ricos, cada um à sua maneira, se prazenteavam na noite de consoada.
Nesse ano, na noite de véspera de Natal, Maria esperava com ânsia que o marido chegasse do trabalho. Já passava das sete da tarde e não era costume atrasar-se em noites especiais como aquela. «Deve ter ficado a terminar alguma encomenda especial de Natal», pensou, para afastar maus pressentimentos, «ou está a preparar uma das suas surpresas». Sorriu para dentro e conteve a ansiedade, tratando de conferir que tudo estava como ela queria. 
Sabia que Jorge ia ficar contente com o cuidado com que ela tinha preparado a casa naquela noite. A mesa estava posta em convite que abria o apetite e, no centro, um arranjo de flores e enfeites que ela própria tinha feito. Todas as divisões estavam aquecidas pelo ar quente que saía dos caloríferos num ronronar lânguido e constante. O jantar estava no forno e um delicioso aroma a assado e doces caseiros enchia a casa de promessas e conforto. A promessa do conforto de estarem juntos.
Jorge era um homem de poucas falas, conservador fervoroso, mas muito justo e generoso. E não se continha na hora de tecer elogios e demonstrar o seu agrado pela forma como Maria cuidava dele e do lar. Costumava dizer, em tom de brincadeira mordaz «nunca hei-de ficar a saber quando estiver morto, de tal forma vais arranjar a última morada para me receber, hei-de julgar que continuo a viver, contigo e aqui em casa!»
Maria era uma mulher feliz, com uma vida simples. Sabia que havia um mundo lá fora que ela mal conhecia mas jamais seria capaz de abandonar a casa, o lar, o mundo que tinham construído os dois. E era esse mundo que celebravam naquela noite. O seu mundo. Sentia-se preenchida e naquele momento já não conseguia fazer mais nada senão aguentar o frio nervoso e doce que dançava na sua barriga e esperar a chegada do marido.
A árvore de Natal erguia-se a um canto, envolvida em luzes que piscavam tranquilamente. Era um pinheiro manso que eles próprios tinham ido buscar à mata junto à Lagoa de Albufeira. Agora estava ali, decorado e imponente, a guardar os embrulhos e postais de boas-festas enviados por clientes e amigos do casal. Esperavam sempre pela meia-noite para trocarem os presentes. E a cada ano que passava, esmeravam-se  sempre um pouco mais na surpresa que preparavam um para o outro. Por isso, escondiam as suas prendas até ao momento da troca, com um nervoso miúdo antes de abrirem o seu presente. Faziam este jogo há mais de dez anos, como se fossem crianças. Amavam-se verdadeiramente.
Mas as horas iam avançando e Maria começou a sentir um misto de preocupação e zanga pelo atraso não avisado do marido. Estranhou este comportamento, dado que ele nunca chegava depois das sete da tarde, e já passava das oito e meia. 
Lembrou-se de ligar para a loja. Se ninguém atendesse era porque ele já viria a caminho. Sem aguentar mais, levantou-se num assomo. Dirigiu-se ao telefone, mas este rompeu num toque estridente antes de ela lhe pegar. Um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha. Levantou o auscultador e reparou que a sua mão tremia. Engoliu em seco.
- Está sim?

II
Preto


Passaram mais de duas semanas até que conseguisse regressar ao apartamento de Campo de Ourique depois da tragédia que se havia abatido sobre ela naquela véspera de Natal. 
Já nem se lembrava da voz condoída a dizer-lhe ao telefone que algo de terrível tinha acontecido ao seu marido. Recordava-se apenas da sensação de peso, como se o ar e o corpo, tudo à sua volta, se transformasse em chumbo e a puxasse para um abismo sem fundo. O choque foi imediato. Jorge estava morto. O resto não interessava. Foi como se a mente se desligasse do mundo exterior e suprimisse todas as reacções e emoções para além de uma e uma só: sobreviver. 
Assim, depois de desligar o telefone, Maria preparou uma pequena mala com o mínimo essencial e saiu para casa de uma amiga. Os dias seguintes foram passados em modo automático a tratar das burocracias e liturgias inerentes à morte de Jorge: velório, funeral, cartas às finanças, habilitações de herdeiros (era apenas ela), missa de sétimo dia, ouvir as infinitamente ensaiadas condolências de amigos, clientes, vizinhos, familiares distantes, tratar do encerramento e venda da loja, etc....não parou enquanto não se libertou de tudo o que lhe lembrava constantemente da morte de Jorge e dos espaços, agora vazios e desolados, que o marido já não ocupava. 
Todos os que a rodearam, por apoio ou sincera preocupação, estranharam a frieza e dureza que aquela pequena mulher conseguia assumir perante tão cruel desgraça. 
Negou-se a ir a casa enquanto não estivesse tudo resolvido. Aí trataria então de enfrentar os vazios com que teria de viver o resto dos dias da sua vida: o que existia dentro dela e o da casa onde viveram e foram felizes à sua própria maneira. A casa e o corpo, o coração, onde continuariam a existir, não fosse a injustiça que lhe tinha levado o marido antes do tempo. 
Até que o turbilhão acalmou um pouco, fazendo com que a poeira das coisas assentasse no chão como a terra sobre o caixão que o enterrou. O facto era agora o tão claro quanto a escuridão que trazia: Jorge estava - e ia ficar para sempre - morto. Tinha desaparecido. Chegara o momento de voltar a casa.
Meteu a chave à porta e entrou. As luzes estavam ligadas e a mesa posta, tudo tal como tinha deixado na véspera de Natal. Sentiu um ímpeto violento de se sentar e desabar a chorar, mas conseguiu conter o primeiro espasmo, um soluço agudo e abafado que ainda subiu sozinho pelo fundo da garganta dorida. 
Arregaçou as mangas do casa preto que vestia e desfez a mesa, a árvore e enfeites de Natal com uma força e energia que não conhecia em si própria. 
Em duas horas deixou tudo arrumado e limpo. Resolveu continuar e decidiu entrar no quarto. Inspirou fundo e, retomando o ímpeto, transpôs a porta e dirigiu-se à cama. Mudou os lençóis e cobertores, separou a roupa para lavar e, sem parar por um segundo que fosse, abriu o armário onde o marido guardava as sua roupa e os sapatos. O cheiro tão familiar e característico do marido causou-lhe uma dor excruciante. Ao mesmo tempo, parecia que ele ainda estava ali, guardado, escondido dentro de algum daqueles fatos. Ignorou os sentimentos e trancou o coração à chave enquanto retirava todas as peças de roupa do marido e as colocava num saco destinado à Igreja. Era o que ele quereria. 
Depois de ter esvaziado o armário, reparou num embrulho volumoso toscamente escondido atrás da sapateira. Estava envolvido em papel pardo com um laço vermelho, muito simples, preso ao invólucro juntamente com um pequeno cartão de boas-festas. Maria soltou o cartão e leu o que estava escrito no interior: "Para ti Maria, roubei o arco-íris e guardei-o nesta caixa. Com amor, do teu Jorge. Natal de 75"
Sentiu um mar de lágrimas a turvar-lhe o olhar. Não precisava de espreitar para o interior do embrulho para saber de que caixa se tratava: era o televisor a cores que ela tanto queria. Jorge tinha conseguido convencê-la de que não a poderiam comprar, só para lhe fazer a surpresa pelo Natal! Até se tinha dado ao trabalho de arranjar a chaimite monocromática que tinham na sala. Riu-se pela primeira vez desde há quase um mês ao lembrar-se da cabeça dele enfiada pelos fios despenteados dos circuitos do aparelho, enquanto dizia «nem pensar, Maria, esta televisão está aqui para durar!». 
Riu-se, sentou-se, agarrou-se ao postal que segurava ferreamente entre os dedos e encostou-se à caixa do aparelho, deixando-se escorregar pela porta do armário até ficar sentada no tapete. O riso depressa se tornou numa angústia doce que lhe inundou os olhos de lágrimas salgadas que começaram a escorrer copiosamente pela sua face. E chorou. Soltou o corpo e a alma num pranto desalmado de dor e amor, desesperado. Chorou em espasmos repetidos, como se quisessem sair do seu corpo, e gritou amargamente por entre os soluços e fungos encharcados pelas lágrimas gordas que a consolavam. Foi chorando cada vez mais baixinho, até que, por fim, adormeceu profundamente ali mesmo. 
Acordou na manhã seguinte, com o corpo dorido do chão duro e a cara inchada pelo pranto. Mas sentiu que tinha dormido numa paz intensa, como se envolvida pela memória do marido que, apesar de dolorosa, era o que de mais valioso existia dentro de si. Imbuída de um novo alento, levantou-se com firmeza e foi arranjar-se para a casa de banho. E havia muito para fazer. Não se ia deitar no chão até morrer. Estava de regresso a casa.
Os dias foram passando, sempre atravessados pelo vazio que Jorge tinha deixado. Em todos os pormenores, em todos os recantos e momentos da vida de Maria. Mas isso confortava-a, aquela presença constante e a lembrança de que a vida de ambos tinha feito sentido. E, apesar da ausência dele, a dor dela também fazia sentido. Não a queria perder. Mas não ia deixar de viver.
Começou por tirar o televisor da caixa e colocá-lo na sala. A presença daquele aparelho tinha um significado ambivalente e contraditório para ela: por um lado, a doçura do marido, que lhe conhecia e reconhecia tão bem, materializada naquele pequeno gesto, mas, por outro, a crueldade da tragédia que tinha acontecido. Da sua morte. E do que ela lhe tirou, a ela. E aos dois. Era, aliás, a prova mais concreta disso.
Por isso, fez um pacto consigo própria. Deixaria a televisão exposta no seu devido lugar na sala, mas jamais a ligaria. Continuaria votada a ver televisão a preto e branco. E assim fez.



III
Preto e Branco

Durante os anos que passaram nunca acendeu a televisão a cores. Viveu a sua vida a preto e branco. Curiosamente, a velha televisão que Jorge tinha arranjado dias antes de morrer (com o único intuito, por sinal, de lhe fazer a surpresa) não falhou uma única vez durante mais de vinte anos. Isso fazia-a sorrir com frequência, na solidão familiar em que passava os serões. 
Viveu o resto da vida numa doçura triste, mas desafogada. As poupanças que tinham feito e o produto da venda da loja somavam um considerável pecúlio para quem se tinha habituado a viver na severidade da incerteza. Maria pôs o dinheiro no Banco e ia retirando dividendos dos investimentos que alguém fazia por ela. Para além disso, passou a dar uso profissional aos seus talentos de cozinheira e costureira e todas as semanas fazia bolos por encomenda para as pastelarias da zona e alguns arranjos de costura.
Apenas saía de casa para ir ao médico, almoçar ou tomar chá com alguma amiga e para entregar os trabalhos que lhe encomendavam. E assim foi pelo fio dos anos que passaram. O mundo mudou. E Maria continuou a ver televisão a preto e branco. Adaptada, resignada, absorvida pelo mundo que ambos tinham construído até à morte de Jorge. Esse mundo que para ela ainda existia. 
Era nesse mundo que vivia. E viveu, imutavelmente, durante trinta anos. Até que um dia recebeu um telefonema da Câmara Municipal a informar que o prédio onde vivia, entretanto degradado e quase totalmente desabitado, já não apresentava a integridade estrutural suficiente para garantir a segurança dela e de terceiros, pelo que teria de sair. Para além disso, havia sido aprovado um Plano Pormenor em Assembleia Municipal e o prédio ia ser substituído por outro, de luxo, com o dobro dos fogos. Garantiam-lhe novo alojamento, naturalmente. 
Maria reagiu com uma imensa e furiosa apatia. Estava doente e cansada. Não queria sair daquela casa, mesmo que apenas temporariamente, mas sabia que isso seria inevitável. As visitas ao médico eram cada vez mais custosas e o seu estado de saúde inspirava cuidados mais continuados. Como não tinha ninguém, para além de uma ou outra amiga a quem nunca daria esse encargo, planeou a sua mudança definitiva para um lar. Pelo menos poderia escolher um que gostasse enquanto ainda estava lúcida e ter alguma qualidade de vida nos poucos anos que lhe restavam. 
Tratou de todas as formalidades no prazo de uma semana. Quanto mais depressa mudasse, mais depressa se habituaria ao seu novo fim de vida. 
Escolheu um lar ali mesmo no bairro e tratou da doação do recheio da casa a instituições de caridade. Guardou apenas alguns objectos para si, como lembrança de uma vida que parecia cada vez mais distante e ausente da sua memória já gasta. Hesitou em relação um item em especial: o que fazer com a televisão a cores, sentada há anos na mesa da sala, ainda por estrear? Custava-lhe desfazer-se dela, mas as regras do lar eram claras: não era permitido levar mobília ou electrodomésticos pessoais, dado que o lar se encontrava munidos de todas essas parafernálias. 
Ligou a uma amiga a oferecer a guarda do aparelho (tratava-se mais de um pedido do que uma oferta), oferta esta recusada por motivos de "vetustez" e inutilidade de uma televisão com mais de trinta anos, completamente desactualizada. Resolveu não pensar mais no assunto. 
O dia da mudança chegou e a carrinha do lar apareceu muito cedo pela manhã. Maria tinha todos os seus pertences impecavelmente arrumados e acondicionados em sacos para facilitar o transporte. A casa estava dolorosamente despida. Os móveis já tinham sido levados pelas instituições de caridade. Todas as divisões estavam vazias. Com excepção da sala, em cujo soalho nu assentava a televisão a cores que ela nunca tinha ligado. Parecia amuada e triste, ali, sozinha, resiliente,  muito bem limpa e luzidia, a pedir para ser levada pela dona. 
Maria avaliou os rapazes que estavam a carregar os sacos pelas escadas e aproveitando um momento em que estavam sós, dirigiu-se àquele que lhe parecia ser o mais bondoso. Era um rapaz novo, de cabelo muito escuro e uns olhos tristes, mas simpáticos. Pediu-lhe (com promessa de uma generosa gratificação) que levasse o televisor para a carrinha embrulhada num cobertor e que depois a escondesse num dos arrumos do lar, sem que ninguém o visse. Ela depois trataria de conquistar as amizades suficientes para lograr conseguir ter o aparelho no seu quarto. 
O rapaz aceitou. Embora estranhando a fixação da senhora por uma televisão velha, percebeu perfeitamente, sem saber explicar porquê, a dimensão do sentimento e significado que tinham para ela. Combinaram que ele levaria a televisão para o patamar intermédio do lanço de escadas que desembocava directamente para a porta do prédio, sob pretexto de, como disse aos colegas, "vêm cá uns tipos da câmara buscar o aparelho e é proibido deixá-lo na rua".
Maria sentiu uma  felicidade que  lhe deu todo um novo alento para aquela transição. Desceu as escadas e refugiou-se no interior quente da carrinha, serena e confiante na bondade e empenho do rapaz em cumprir a missão pedida. Tinha escolhido bem. E, para além disso, ia pagar-lhe uma quantia bastante generosa.
Chovia violentamente - o tempo mantinha assim, aliás, há mais de uma semana - e as rajadas de vento varriam as ruas furiosamente, fazendo bater portas, cair árvores e, por vezes, até pessoas. O chão molhado não ajudava ao equilíbrio.
Maria estava sentada com as costas para a entrada do prédio e nem se apercebeu bem do que aconteceu. Um estrondo parecido com um trovão fez-se ouvir (embora não trovejasse naquele momento), seguido de um chiar cavernoso e arrepiante. Os homens começaram a gritar para dentro do prédio e Maria voltou-se para trás a tempo de ver o rapaz bondoso a fugir de lá de dentro como se tivesse visto um fantasma. Saiu a correr e, entre passos e derrapagens, veio estatelar-se junto à parte de trás da carrinha, batendo com a cabeça na porta. Assustados, os homens acercaram-se dele para ver se estava bem. Maria sentiu um apertão no peito. Com um sentimento de culpa que quase lhe cortou a respiração apercebeu-se de duas coisas: primeiro, o rapaz só voltou para dentro do prédio para cumprir o pedido que ela lhe havia feito. Podia ter morrido, dado que parte do prédio colapsou nesse preciso momento. Segundo, todos os seus pertences estavam já na carrinha e o rapaz tinha saído de mãos vazias. A televisão tinha ficado no patamar. E Maria não sabia que parte e andar do prédio tinha ruído. Sentiu um pânico de desgosto e preocupação, muito superior à vontade de querer saber se o rapaz se tinha aleijado.
Apesar de ter batido com a cabeça no chão, o rapaz estava bem e acabou por recuperar os sentidos e entrar na carrinha pelo seu próprio pé. As dores e os queixumes fizeram-no esquecer do pedido de Maria, que optou por ficar calada, cerrando os dentes num misto de raiva e culpa. Deixou-se ir, contrariada.
Os primeiros meses no lar foram terríveis. Apesar de ter sido bem recebida e ter óptimas condições, Maria não conseguia sacudir da cabeça a sua obsessão pelo aparelho que tinha ficado para trás. Sentia que o tinha abandonado e, assim, que tinha abandonado o que lhe restava de Jorge e do que entretanto se tinha tornado no símbolo da memória e força que a tinham aguentado durante todos aqueles anos depois da sua morte.
Para além disso, começava a custar-lhe cada vez mais lembrar-se do passado, ou melhor, de sentir o passado sem aquele objecto. Para tantos indiferente. Para ela, um sorriso do passado no seu presente de preto e branco. E sem ele, sem a sua casa, sem o conforto do seu mundo e do seu lar, Maria começou a definhar.
Em menos de dois anos, todos os seus problemas de saúde se agravaram exponencialmente. Foi-se isolando cada vez mais, até os seus dias se resumirem ao pequeno quarto, numa agonia de corpo e alma, zangada e esquecida.
Tornou-se cada vez mais amarga. Nada lhe interessava. Quando lhe traziam as refeições e os medicamentos ao quarto limitava-se a cumprir as ordens numa apatia extrema. Por vezes, quando estava mais agitada, gritava e suplicava que a deixassem morrer. «Parem de me dar estas porcarias! Eu quero morrer, não quero continuar mais neste inferno!" E dia após dia, o tempo foi escurecendo para Maria.


IV
Cor

- Lembras-te daquela história que te contei uma vez? - perguntou ele enquanto passavam de carro numa rua de Campo de Ourique.
- Hã? Qual? - ela nem lhe estava a prestar atenção. Tinha o olhar fixo na selva urbana que ia passando pelo vidro do carro como se fosse um filme.
- Daquela, há mais de cinco anos, quando estava a fazer uns biscates durante o curso..... ia ficando quase soterrado dentro de um prédio antigo a tentar salvar a televisão de uma velhota que ia para o lar e não se queria separar dela. Lembras-te? Não consegui trazer a televisão, fiquei cheio de pena da senhora.
- Ah! Já me lembro sim! - virou o rosto para ele com o sorriso iluminado - Sempre adorei essa história. Acho que foste um querido, aliás, como és sempre! Mas porquê, foi aqui?
- Foi sim. Nesse prédio mesmo - e parou o carro.
Apontou para um prédio muito velho que parecia ter sido chicoteado por estilhaços de bomba. Estava rodeado de tapumes. Em tempos deveria ter sido um belo prédio, percebia-se que era de boa construção (caso contrário não teria resistido tantos anos, apesar de ter colapsado parcialmente) e a fachada, apesar de suja e degradada, denunciava a  beleza de outrora, agora escondida.
Ela saiu do carro e deteve-se defronte do prédio. Ficava sempre fascinada com os prédio abandonados, com as vidas desaparecidas que neles aconteceram, um passado de histórias e momentos de amor, raiva, tristeza, alegria... tudo reduzido ao frio empedernido daquele prédio antigo.
- Será que a televisão ainda está no sítio onde a deixaste? - perguntou de repente com um entusiasmo juvenil.
- Não sei..... se não ficou esmagada por algum dos pedaços de tecto que caíram quando fugi, entretanto deve ter sido roubada de certeza, já passaram tantos anos.... Mas não estás a pensar em ir buscá-la, não? Anda, vamos embora antes que tenhas alguma ideia maluca.
- Não, espera. Não a quero ir buscar. Mas vê ali, há um abertura entre os tapumes e a porta de entrada parece não estar trancada. Podíamos ir ver se ela ainda lá está....e tirar uma fotografia! - correu para o carro   e num ápice voltou de máquina em riste - Estou tão curiosa! Vá lá!
Ele deitou-lhe um olhar zangado e reprovador. Era perigoso e disparatado. Mas sabia que o entusiasmo dela era genuíno e dificilmente a conseguiria demover. «Nunca devia ter parado», pensou. Mas era tarde para isso. Gostava dela e sabia que aquela pequena aventura a ia fazer feliz. Engoliu a preocupação e disse, descontraindo o cenho - Está bem, mas despachas-te em dois minutos e eu vou ficar aqui fora a ver se aparece alguém. Se acontecer alguma coisa gritas logo que eu vou a correr. E se eu te chamar, seja por que razão for, tu voltas logo. OK? - Combinado! - disse ela sem disfarçar o entusiasmo na voz - Se ainda estiver lá nem vou acreditar! É uma história a sério! Estou tão curiosa..... - e de repente lembrou-se - Será que a senhora ainda é viva? Vamos ter de descobrir, podes sempre ligar para o lar onde trabalhaste durante o curso...
Ele sorriu carinhosamente, sem conseguir disfarçar nele próprio alguma da curiosidade e entusiasmo que ela sentia. Não conseguiu deixar de se perguntar se a senhora ainda estaria viva. Já tinham passado tantos anos.
Só teve tempo de gritar enquanto ela se esgueirava já por entre o rasgão que separava dois tapumes - Não passes da entrada, ouviste! O prédio está instável. Tens de ficar à porta!. Um «ok» abafado e seco foi a última coisa que ouviu antes de a ver desaparecer.
Os cinco minutos prometidos pareceram-lhe duas horas devido à ansiedade dolorosa causa pela preocupação. No fim, preparava-se já para ir buscá-la lá dentro quando a viu aparecer pela estreita abertura com um sorriso iluminado e o aspecto de quem tinha acabado de ver não um fantasma, mas um anjo. 
Trazia a máquina em riste, que abanou triunfante enquanto gritava: "estava lá! tal como descreveste! Só tive tempo de tirar uma fotografia, aquilo lá dentro é arrepiante." Mostrou-lhe o resultado no ecrã lcd da sua máquina. Sentiu uma enorme angústia dentro de si, sem saber porquê. 
Observou atentamente a fotografia, que mostrava o televisor no mesmo exacto sítio onde o tinha deixado, abandonado, anos antes. Tinha ficado ali, à vista escondida da porta da rua, escancarada, como se esperasse ainda que o levassem para junto de Maria. Mas ninguém o tinha vindo buscar. Ficou esquecido, a documentar um passado apagado e a espelhar no presente o prédio cansado, as paredes descascadas em camadas de tinta e cal, que, tal como os veios de uma árvore ou os sedimentos acumulados sob o chão que pisamos, denunciavam a história e os anos de um mundo acabado. A tinta estalada na parede - que Maria se lembrava bem de ter visto pintar - caía em lascas pelo soalho, como se chorassem pelo seu abandono num processo de auto-demolição. Como se o prédio, agora frio e vazio, soubesse que já não tinha propósito ou razão. Aguardava apenas, decadente, a sua inevitável destruição. 
E Maria, quando viu a fotografia que um dia o casal lhe mostrou, comovido, também ela chorou, lembrou, a vida  e o amor que a morte e o tempo fez ruir. E por entre os escombros e o pó, protegido pelas paredes de carne viva, apodrecida e rasgada pelas fissuras que o tempo fez golpear, jazia aquele aparelho imponente, ainda polido e brilhante, como novo, por estrear. A guardar e a ser, o presente, que Jorge nunca lhe chegou a dar. Que ela abandonou e perdeu, mesmo ali naquele primeiro patamar, mas que agora tinha vindo ter com ela, num gesto de ironia doce do destino, através daquela fotografia. O primeiro e único registo a cor de um televisor que nunca a viu, nunca foi nem se acendeu e apenas serviu, calado, para reflectir no seu ecrã apagado uma vida de solidão. A preto e branco.
Nessa noite, Maria deitou-se com a fotografia entre a palma e o coração. No escuro absoluto do quarto e dos seus olhos cerrados, lembrou-se da primeira vez que tinha visto Jorge, do seu casamento, do seu afago quente em dias de frio, da primeira vez que fizeram amor, dos passeios a Sintra sob o sol misterioso do Inverno. Dos anos passados sem dor. Dos serões passados no seu mundo, no seu lar. Nunca tinha deixado de o amar. Sentiu uma paz imensa. Sentiu o abraço de Jorge ali, deitado a seu lado, como costumava fazer, a envolvê-la até o dia nascer. Dormiu, recordou, sonhou, chorou, sorriu. 
E já não acordou.
Fim






Texto : José Anjos
Fotografia : Estelle Valente

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