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REVELAÇÃO
(do latim revelatio,
-onis)
s. f.
1. Acto ou efeito de revelar ou de revelar-se.
2. Coisa que é revelada.
6. Inspiração; conhecimento
súbito.
7.
Acção de revelar uma película sensível, um
negativo ou uma cópia fotográfica.
8. Negativo ou cópia
fotográfica revelada.
I
Branco
- Jorge, pára com isso! Já te disse que é impossível arranjá-la! Foi desta que pifou de vez!
- Ó Maria, espera um bocado que já vais ver que eu
consigo........ - e mergulhou novamente a cabeça por entre os fios que saíam
das entranhas já gastas do aparelho.
- És mesmo teimoso, homem. Ainda vais apanhar um
choque daqueles....tira daí as mãos! Não vês que ela morreu? Nada dura para
sempre! Nem os animais, nem as pessoas...nem mesmo a D. Justina do Sossego
aqui do andar de cima, apesar dos anos agarrada à cama e daqueles gritos
nocturnos...... - levou as mãos à cabeça em sinal de desespero - e muito menos
essa televisão velha e baratucha, que já deu o que tinha a dar. As coisas
também chegam ao fim da sua vida!
- Ah! Eis um milagre então! - respondeu ele com um
sorriso triunfante. E afastou-se do ecrã do televisor que, com esforço
evidente, se acendia novamente. Aos poucos a imagem do rosto narigudo do
Júlio Isidro recuperava da escuridão absoluta para um cinzento viçoso. Ouviu-se
um chiado desafinado e depois o som granuloso da banda que acompanhava o
programa.
Maria não conseguiu disfarçar um esgar de
desapontamento - "Confesso que estava na esperança que esse monstrengo já
não tivesse arranjo. Assim teríamos que comprar uma daquelas mais modernas, com
cores e telecomando! Estou cansada de ver tudo a preto e
branco.....especialmente a novela, às vezes nem consigo distinguir bem as
personagens! E tu sabes como eu gosto da novela!"
- "Pois... mas esta está arranjada! E é para
durar. Sabes que não temos dinheiro para gastar nessas coisas. O mês passado
recebi ainda menos encomendas do que esperava. Parece que as pessoas andam tão
ocupadas que já nem têm tempo para se sentarem como antigamente. Isto não está
fácil, Mariazinha..."
Maria sabia que ele tinha razão e que não valia
pena insistir. Encolheu os ombros e voltou para a cozinha, resignada. Guardou
em segredo o desejo de ver o aparelho finar-se de vez, com sorte num dos
próximos dias.
Corria o Natal de 1975. Viviam-se tempos difíceis
mas calorosos na casa de Maria e Jorge Vicente. Não tinham filhos, mas o tempo,
a idade e a dificuldade tinham, entre tanto e tão pouco, arrasado essa
possibilidade. Tornou-se num sonho desfeito em angústia sempre presente, apenas
esmagada ao longo dos anos pelas rotinas e cumplicidades que partilhavam
diariamente.
Mas no Natal tornava-se mais complicado preencher o
vazio que os unia num desgosto surdo. Eram só os dois. E a televisão que
lhes enchia o serão. Mais ninguém. Assim, cada um fazia tudo o que podia
para distrair e mimar o outro com os presentes e surpresas possíveis. E apesar
da tristeza de não terem filhos foram aprendendo a ser felizes na companhia um
do outro, com a ternura e carinho que sentiam um pelo outro. No amor que viviam
um com outro.
No Natal, o apartamento exíguo mas confortável em
que viviam no bairro de Campo de Ourique enchia-se de luz e velas, enfeites e
soberbos manjares confeccionados com o talento e dedicação que Maria Vicente
tinha tanto orgulho em exibir. Era óptima cozinheira e uma dona-de-casa com
super-poderes. Fazia questão de ter sempre tudo impecável e de dar a todas as
divisões o seu toque pessoal: uma flor, uma fotografia, os tecidos e a mobília
que escolhia, a iluminação, de noite e de dia, tudo era estudado e disposto
para tornar o ambiente do lar o mais confortável e quente possível. Como Jorge
lhe costumava dizer, ela era «a mulher mais especial que um homem podia
desejar». Ela sabia bem disso e gostava de o agradar sempre que podia e fazia-o,
aliás, de forma indisfarçável.
Jorge era estofador de profissão, mister a que se dedicava desde os seus doze
anos, idade com que tinha começado a trabalhar como ajudante na loja do seu tio
Alfredo. Com o passar dos anos foi ganhando perícia no que fazia e cada vez
eram mais os clientes que o recomendavam e lhe encomendavam trabalhos. Até que
o seu tio Alfredo, assombrado como um abutre faminto pelas sequelas de febre
reumática que tinha tido em pequeno, acabou por sucumbir ao desgaste do coração
e morreu de insuficiência cardíaca em 1971.
Jorge ficou à frente da loja e desde então que
trabalhava sozinho de sol a sol para dar vazão a todas as encomendas. Quando o
negócio afrouxava, aproveitava o seu jeito natural para fazer uns biscates
como electricista ou canalizador. Era um homem duro e resiliente.
Maria dava-lhe algum apoio na organização da escrita comercial - Jorge era um
desastre nessas lides - mas raramente se deslocava à loja.
O dinheiro que entrava dava para pagar as despesas
e viver com alguma segurança, desde que fossem regrados e se mantivessem
preocupados em amealhar algumas poupanças. Eram felizes na sua modéstia. E o
Natal era a única época do ano em que se permitiam sair da severa rotina e
cometer algumas "excentricidades": um cabrito para o jantar, uma boa
garrafa de vinho tinto e as mínimas mordomias e iguarias com que todos, pobres
ou ricos, cada um à sua maneira, se prazenteavam na noite de consoada.
Nesse ano, na noite de véspera de Natal, Maria
esperava com ânsia que o marido chegasse do trabalho. Já passava das sete da
tarde e não era costume atrasar-se em noites especiais como aquela. «Deve ter
ficado a terminar alguma encomenda especial de Natal», pensou, para afastar
maus pressentimentos, «ou está a preparar uma das suas surpresas». Sorriu para
dentro e conteve a ansiedade, tratando de conferir que tudo estava como ela
queria.
Sabia que Jorge ia ficar contente com o cuidado com
que ela tinha preparado a casa naquela noite. A mesa estava posta em convite
que abria o apetite e, no centro, um arranjo de flores e enfeites que ela
própria tinha feito. Todas as divisões estavam aquecidas pelo ar quente que
saía dos caloríferos num ronronar lânguido e constante. O jantar
estava no forno e um delicioso aroma a assado e doces caseiros enchia a casa de
promessas e conforto. A promessa do conforto de estarem juntos.
Jorge era um homem de poucas falas, conservador
fervoroso, mas muito justo e generoso. E não se continha na hora de tecer
elogios e demonstrar o seu agrado pela forma como Maria cuidava dele e do lar.
Costumava dizer, em tom de brincadeira mordaz «nunca hei-de ficar a saber
quando estiver morto, de tal forma vais arranjar a última morada para me
receber, hei-de julgar que continuo a viver, contigo e aqui em casa!»
Maria era uma mulher feliz, com uma vida simples.
Sabia que havia um mundo lá fora que ela mal conhecia mas jamais seria capaz de
abandonar a casa, o lar, o mundo que tinham construído os dois. E era esse
mundo que celebravam naquela noite. O seu mundo. Sentia-se preenchida e naquele
momento já não conseguia fazer mais nada senão aguentar o frio nervoso e doce
que dançava na sua barriga e esperar a chegada do marido.
A árvore de Natal erguia-se a um canto, envolvida
em luzes que piscavam tranquilamente. Era um pinheiro manso que eles próprios
tinham ido buscar à mata junto à Lagoa de Albufeira. Agora estava ali, decorado
e imponente, a guardar os embrulhos e postais de boas-festas enviados por
clientes e amigos do casal. Esperavam sempre pela meia-noite para trocarem os
presentes. E a cada ano que passava, esmeravam-se sempre um pouco mais na
surpresa que preparavam um para o outro. Por isso, escondiam as suas prendas
até ao momento da troca, com um nervoso miúdo antes de abrirem o seu presente.
Faziam este jogo há mais de dez anos, como se fossem crianças. Amavam-se
verdadeiramente.
Mas as horas iam avançando e Maria começou a sentir
um misto de preocupação e zanga pelo atraso não avisado do marido. Estranhou
este comportamento, dado que ele nunca chegava depois das sete da tarde, e já
passava das oito e meia.
Lembrou-se de ligar para a loja. Se ninguém
atendesse era porque ele já viria a caminho. Sem aguentar mais, levantou-se num
assomo. Dirigiu-se ao telefone, mas este rompeu num toque estridente antes de
ela lhe pegar. Um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha. Levantou o
auscultador e reparou que a sua mão tremia. Engoliu em seco.
- Está sim?
II
Preto
Passaram mais de duas semanas até que conseguisse
regressar ao apartamento de Campo de Ourique depois da tragédia que se havia
abatido sobre ela naquela véspera de Natal.
Já nem se lembrava da voz condoída a dizer-lhe ao
telefone que algo de terrível tinha acontecido ao seu marido. Recordava-se
apenas da sensação de peso, como se o ar e o corpo, tudo à sua volta, se
transformasse em chumbo e a puxasse para um abismo sem fundo. O choque foi imediato.
Jorge estava morto. O resto não interessava. Foi como se a mente se desligasse
do mundo exterior e suprimisse todas as reacções e emoções para além de uma e
uma só: sobreviver.
Assim, depois de desligar o telefone, Maria
preparou uma pequena mala com o mínimo essencial e saiu para casa de uma amiga.
Os dias seguintes foram passados em modo automático a tratar das burocracias e
liturgias inerentes à morte de Jorge: velório, funeral, cartas às finanças,
habilitações de herdeiros (era apenas ela), missa de sétimo dia, ouvir as
infinitamente ensaiadas condolências de amigos, clientes, vizinhos, familiares
distantes, tratar do encerramento e venda da loja, etc....não parou enquanto
não se libertou de tudo o que lhe lembrava constantemente da morte de Jorge e
dos espaços, agora vazios e desolados, que o marido já não ocupava.
Todos os que a rodearam, por apoio ou sincera
preocupação, estranharam a frieza e dureza que aquela pequena mulher conseguia
assumir perante tão cruel desgraça.
Negou-se a ir a casa enquanto não estivesse tudo
resolvido. Aí trataria então de enfrentar os vazios com que teria de viver o
resto dos dias da sua vida: o que existia dentro dela e o da casa onde viveram
e foram felizes à sua própria maneira. A casa e o corpo, o coração, onde continuariam
a existir, não fosse a injustiça que lhe tinha levado o marido antes do
tempo.
Até que o turbilhão acalmou um pouco, fazendo com
que a poeira das coisas assentasse no chão como a terra sobre o caixão que o
enterrou. O facto era agora o tão claro quanto a escuridão que trazia: Jorge
estava - e ia ficar para sempre - morto. Tinha desaparecido. Chegara o momento
de voltar a casa.
Meteu a chave à porta e entrou. As luzes estavam
ligadas e a mesa posta, tudo tal como tinha deixado na véspera de Natal. Sentiu
um ímpeto violento de se sentar e desabar a chorar, mas conseguiu conter o
primeiro espasmo, um soluço agudo e abafado que ainda subiu sozinho pelo fundo
da garganta dorida.
Arregaçou as mangas do casa preto que vestia e
desfez a mesa, a árvore e enfeites de Natal com uma força e energia que não
conhecia em si própria.
Em duas horas deixou tudo arrumado e limpo.
Resolveu continuar e decidiu entrar no quarto. Inspirou fundo e, retomando o
ímpeto, transpôs a porta e dirigiu-se à cama. Mudou os lençóis e cobertores,
separou a roupa para lavar e, sem parar por um segundo que fosse, abriu o
armário onde o marido guardava as sua roupa e os sapatos. O cheiro tão familiar
e característico do marido causou-lhe uma dor excruciante. Ao mesmo tempo,
parecia que ele ainda estava ali, guardado, escondido dentro de algum daqueles
fatos. Ignorou os sentimentos e trancou o coração à chave enquanto retirava
todas as peças de roupa do marido e as colocava num saco destinado à Igreja.
Era o que ele quereria.
Depois de ter esvaziado o armário, reparou num
embrulho volumoso toscamente escondido atrás da sapateira. Estava envolvido em
papel pardo com um laço vermelho, muito simples, preso ao invólucro juntamente
com um pequeno cartão de boas-festas. Maria soltou o cartão e leu o que estava
escrito no interior: "Para
ti Maria, roubei o arco-íris e guardei-o nesta caixa. Com amor, do teu Jorge.
Natal de 75".
Sentiu um mar de lágrimas a turvar-lhe o olhar. Não
precisava de espreitar para o interior do embrulho para saber de que caixa se
tratava: era o televisor a cores que ela tanto queria. Jorge tinha conseguido
convencê-la de que não a poderiam comprar, só para lhe fazer a surpresa pelo
Natal! Até se tinha dado ao trabalho de arranjar a chaimite monocromática que
tinham na sala. Riu-se pela primeira vez desde há quase um mês ao lembrar-se da
cabeça dele enfiada pelos fios despenteados dos circuitos do aparelho, enquanto
dizia «nem pensar, Maria, esta televisão está aqui para durar!».
Riu-se, sentou-se, agarrou-se ao postal que
segurava ferreamente entre os dedos e encostou-se à caixa do aparelho,
deixando-se escorregar pela porta do armário até ficar sentada no tapete. O
riso depressa se tornou numa angústia doce que lhe inundou os olhos de lágrimas
salgadas que começaram a escorrer copiosamente pela sua face. E chorou. Soltou
o corpo e a alma num pranto desalmado de dor e amor, desesperado. Chorou em
espasmos repetidos, como se quisessem sair do seu corpo, e gritou amargamente
por entre os soluços e fungos encharcados pelas lágrimas gordas que a
consolavam. Foi chorando cada vez mais baixinho, até que, por fim, adormeceu
profundamente ali mesmo.
Acordou na manhã seguinte, com o corpo dorido do
chão duro e a cara inchada pelo pranto. Mas sentiu que tinha dormido numa paz
intensa, como se envolvida pela memória do marido que, apesar de dolorosa, era
o que de mais valioso existia dentro de si. Imbuída de um novo alento,
levantou-se com firmeza e foi arranjar-se para a casa de banho. E havia muito
para fazer. Não se ia deitar no chão até morrer. Estava de regresso a
casa.
Os dias foram passando, sempre atravessados pelo
vazio que Jorge tinha deixado. Em todos os pormenores, em todos os recantos e
momentos da vida de Maria. Mas isso confortava-a, aquela presença constante e a
lembrança de que a vida de ambos tinha feito sentido. E, apesar da ausência
dele, a dor dela também fazia sentido. Não a queria perder. Mas não ia deixar
de viver.
Começou por tirar o televisor da caixa e colocá-lo
na sala. A presença daquele aparelho tinha um significado ambivalente e
contraditório para ela: por um lado, a doçura do marido, que lhe conhecia e
reconhecia tão bem, materializada naquele pequeno gesto, mas, por outro, a
crueldade da tragédia que tinha acontecido. Da sua morte. E do que ela lhe tirou,
a ela. E aos dois. Era, aliás, a prova mais concreta disso.
Por isso, fez um pacto consigo própria. Deixaria a
televisão exposta no seu devido lugar na sala, mas jamais a ligaria.
Continuaria votada a ver televisão a preto e branco. E assim fez.
III
Preto e Branco
Durante os anos que passaram nunca acendeu a
televisão a cores. Viveu a sua vida a preto e branco. Curiosamente, a velha
televisão que Jorge tinha arranjado dias antes de morrer (com o único intuito,
por sinal, de lhe fazer a surpresa) não falhou uma única vez durante mais de
vinte anos. Isso fazia-a sorrir com frequência, na solidão familiar em que
passava os serões.
Viveu o resto da vida numa doçura triste, mas
desafogada. As poupanças que tinham feito e o produto da venda da loja somavam
um considerável pecúlio para quem se tinha habituado a viver na severidade da
incerteza. Maria pôs o dinheiro no Banco e ia retirando dividendos dos
investimentos que alguém fazia por ela. Para além disso, passou a dar uso
profissional aos seus talentos de cozinheira e costureira e todas as semanas
fazia bolos por encomenda para as pastelarias da zona e alguns arranjos de
costura.
Apenas saía de casa para ir ao médico, almoçar ou
tomar chá com alguma amiga e para entregar os trabalhos que lhe encomendavam. E
assim foi pelo fio dos anos que passaram. O mundo mudou. E Maria continuou a
ver televisão a preto e branco. Adaptada, resignada, absorvida pelo mundo que
ambos tinham construído até à morte de Jorge. Esse mundo que para ela ainda
existia.
Era nesse mundo que vivia. E viveu, imutavelmente,
durante trinta anos. Até que um dia recebeu um telefonema da Câmara Municipal a
informar que o prédio onde vivia, entretanto degradado e quase totalmente
desabitado, já não apresentava a integridade estrutural suficiente para
garantir a segurança dela e de terceiros, pelo que teria de sair. Para além
disso, havia sido aprovado um Plano Pormenor em Assembleia Municipal e o prédio
ia ser substituído por outro, de luxo, com o dobro dos fogos. Garantiam-lhe
novo alojamento, naturalmente.
Maria reagiu com uma imensa e furiosa apatia.
Estava doente e cansada. Não queria sair daquela casa, mesmo que apenas
temporariamente, mas sabia que isso seria inevitável. As visitas ao médico eram
cada vez mais custosas e o seu estado de saúde inspirava cuidados mais
continuados. Como não tinha ninguém, para além de uma ou outra amiga a quem
nunca daria esse encargo, planeou a sua mudança definitiva para um lar. Pelo
menos poderia escolher um que gostasse enquanto ainda estava lúcida e ter
alguma qualidade de vida nos poucos anos que lhe restavam.
Tratou de todas as formalidades no prazo de uma
semana. Quanto mais depressa mudasse, mais depressa se habituaria ao seu novo
fim de vida.
Escolheu um lar ali mesmo no bairro e tratou da
doação do recheio da casa a instituições de caridade. Guardou apenas alguns
objectos para si, como lembrança de uma vida que parecia cada vez mais distante
e ausente da sua memória já gasta. Hesitou em relação um item em especial: o
que fazer com a televisão a cores, sentada há anos na mesa da sala, ainda por
estrear? Custava-lhe desfazer-se dela, mas as regras do lar eram claras: não
era permitido levar mobília ou electrodomésticos pessoais, dado que o lar se
encontrava munidos de todas essas parafernálias.
Ligou a uma amiga a oferecer a guarda do aparelho
(tratava-se mais de um pedido do que uma oferta), oferta esta recusada por
motivos de "vetustez" e inutilidade de uma televisão com mais de
trinta anos, completamente desactualizada. Resolveu não pensar mais no
assunto.
O dia da mudança chegou e a carrinha do lar
apareceu muito cedo pela manhã. Maria tinha todos os seus pertences
impecavelmente arrumados e acondicionados em sacos para facilitar o transporte.
A casa estava dolorosamente despida. Os móveis já tinham sido levados pelas
instituições de caridade. Todas as divisões estavam vazias. Com excepção da
sala, em cujo soalho nu assentava a televisão a cores que ela nunca tinha
ligado. Parecia amuada e triste, ali, sozinha, resiliente, muito bem
limpa e luzidia, a pedir para ser levada pela dona.
Maria avaliou os rapazes que estavam a carregar os
sacos pelas escadas e aproveitando um momento em que estavam sós, dirigiu-se
àquele que lhe parecia ser o mais bondoso. Era um rapaz novo, de cabelo muito
escuro e uns olhos tristes, mas simpáticos. Pediu-lhe (com promessa de uma
generosa gratificação) que levasse o televisor para a carrinha embrulhada num
cobertor e que depois a escondesse num dos arrumos do lar, sem que ninguém o
visse. Ela depois trataria de conquistar as amizades suficientes para lograr
conseguir ter o aparelho no seu quarto.
O rapaz aceitou. Embora estranhando a fixação da
senhora por uma televisão velha, percebeu perfeitamente, sem saber explicar
porquê, a dimensão do sentimento e significado que tinham para ela. Combinaram
que ele levaria a televisão para o patamar intermédio do lanço de escadas que
desembocava directamente para a porta do prédio, sob pretexto de, como disse
aos colegas, "vêm cá uns tipos da câmara buscar o aparelho e é proibido
deixá-lo na rua".
Maria sentiu uma felicidade que lhe deu
todo um novo alento para aquela transição. Desceu as escadas e refugiou-se no
interior quente da carrinha, serena e confiante na bondade e empenho do rapaz
em cumprir a missão pedida. Tinha escolhido bem. E, para além disso, ia
pagar-lhe uma quantia bastante generosa.
Chovia violentamente - o tempo mantinha assim,
aliás, há mais de uma semana - e as rajadas de vento varriam as ruas
furiosamente, fazendo bater portas, cair árvores e, por vezes, até pessoas. O
chão molhado não ajudava ao equilíbrio.
Maria estava sentada com as costas para a entrada
do prédio e nem se apercebeu bem do que aconteceu. Um estrondo parecido com um
trovão fez-se ouvir (embora não trovejasse naquele
momento), seguido de um chiar cavernoso e arrepiante. Os homens
começaram a gritar para dentro do prédio e Maria voltou-se para trás a tempo de
ver o rapaz bondoso a fugir de lá de dentro como se tivesse visto um fantasma.
Saiu a correr e, entre passos e derrapagens, veio estatelar-se junto à parte de
trás da carrinha, batendo com a cabeça na porta. Assustados, os homens
acercaram-se dele para ver se estava bem. Maria sentiu um apertão no peito. Com
um sentimento de culpa que quase lhe cortou a respiração apercebeu-se de duas coisas:
primeiro, o rapaz só voltou para dentro do prédio para cumprir o pedido que ela
lhe havia feito. Podia ter morrido, dado que parte do prédio colapsou nesse
preciso momento. Segundo, todos os seus pertences estavam já na carrinha e o
rapaz tinha saído de mãos vazias. A televisão tinha ficado no patamar. E Maria
não sabia que parte e andar do prédio tinha ruído. Sentiu um pânico de desgosto
e preocupação, muito superior à vontade de querer saber se o rapaz se tinha
aleijado.
Apesar de ter batido com a cabeça no chão, o rapaz
estava bem e acabou por recuperar os sentidos e entrar na carrinha pelo seu
próprio pé. As dores e os queixumes fizeram-no esquecer do pedido de Maria, que
optou por ficar calada, cerrando os dentes num misto de raiva e culpa.
Deixou-se ir, contrariada.
Os primeiros meses no lar foram terríveis. Apesar
de ter sido bem recebida e ter óptimas condições, Maria não conseguia sacudir
da cabeça a sua obsessão pelo aparelho que tinha ficado para trás. Sentia que o
tinha abandonado e, assim, que tinha abandonado o que lhe restava de Jorge e do
que entretanto se tinha tornado no símbolo da memória e força que a tinham
aguentado durante todos aqueles anos depois da sua morte.
Para além disso, começava a custar-lhe cada vez
mais lembrar-se do passado, ou melhor, de sentir o passado sem aquele objecto.
Para tantos indiferente. Para ela, um sorriso do passado no seu presente de
preto e branco. E sem ele, sem a sua casa, sem o conforto do seu mundo e do seu
lar, Maria começou a definhar.
Em menos de dois anos, todos os seus problemas de
saúde se agravaram exponencialmente. Foi-se isolando cada vez mais, até os seus
dias se resumirem ao pequeno quarto, numa agonia de corpo e alma, zangada e
esquecida.
Tornou-se cada vez mais amarga. Nada lhe
interessava. Quando lhe traziam as refeições e os medicamentos ao quarto
limitava-se a cumprir as ordens numa apatia extrema. Por vezes, quando
estava mais agitada, gritava e suplicava que a deixassem morrer. «Parem de me
dar estas porcarias! Eu quero morrer, não quero continuar mais neste
inferno!" E dia após dia, o tempo foi escurecendo para Maria.
IV
Cor
- Lembras-te daquela história que te contei uma
vez? - perguntou ele enquanto passavam de carro numa rua de Campo de Ourique.
- Hã? Qual? - ela nem lhe estava a prestar atenção.
Tinha o olhar fixo na selva urbana que ia passando pelo vidro do carro como se
fosse um filme.
- Daquela, há mais de cinco anos, quando estava a
fazer uns biscates durante o curso..... ia ficando quase soterrado dentro de um
prédio antigo a tentar salvar a televisão de uma velhota que ia para o lar e
não se queria separar dela. Lembras-te? Não consegui trazer a televisão, fiquei
cheio de pena da senhora.
- Ah! Já me lembro sim! - virou o rosto para ele
com o sorriso iluminado - Sempre adorei essa história. Acho que foste um
querido, aliás, como és sempre! Mas porquê, foi aqui?
- Foi sim. Nesse prédio mesmo - e parou o carro.
Apontou para um prédio muito velho que parecia ter
sido chicoteado por estilhaços de bomba. Estava rodeado de tapumes. Em tempos
deveria ter sido um belo prédio, percebia-se que era de boa construção (caso
contrário não teria resistido tantos anos, apesar de ter colapsado
parcialmente) e a fachada, apesar de suja e degradada, denunciava a beleza
de outrora, agora escondida.
Ela saiu do carro e deteve-se defronte do prédio.
Ficava sempre fascinada com os prédio abandonados, com as vidas desaparecidas
que neles aconteceram, um passado de histórias e momentos de amor, raiva,
tristeza, alegria... tudo reduzido ao frio empedernido daquele prédio antigo.
- Será que a televisão ainda está no sítio onde a
deixaste? - perguntou de repente com um entusiasmo juvenil.
- Não sei..... se não ficou esmagada por algum dos
pedaços de tecto que caíram quando fugi, entretanto deve ter sido roubada de
certeza, já passaram tantos anos.... Mas não estás a pensar em ir buscá-la,
não? Anda, vamos embora antes que tenhas alguma ideia maluca.
- Não, espera. Não a quero ir buscar. Mas vê ali,
há um abertura entre os tapumes e a porta de entrada parece não estar trancada.
Podíamos ir ver se ela ainda lá está....e tirar uma fotografia! - correu para o
carro e num ápice voltou de máquina em riste - Estou tão curiosa! Vá lá!
Ele deitou-lhe um olhar zangado e reprovador. Era
perigoso e disparatado. Mas sabia que o entusiasmo dela era genuíno e
dificilmente a conseguiria demover. «Nunca devia ter parado», pensou. Mas era
tarde para isso. Gostava dela e sabia que aquela pequena aventura a ia fazer
feliz. Engoliu a preocupação e disse, descontraindo o cenho - Está bem, mas
despachas-te em dois minutos e eu vou ficar aqui fora a ver se aparece alguém.
Se acontecer alguma coisa gritas logo que eu vou a correr. E se eu te chamar,
seja por que razão for, tu voltas logo. OK? - Combinado! - disse ela sem
disfarçar o entusiasmo na voz - Se ainda estiver lá nem vou acreditar! É uma
história a sério! Estou tão curiosa..... - e de repente lembrou-se - Será que a
senhora ainda é viva? Vamos ter de descobrir, podes sempre ligar para o lar onde
trabalhaste durante o curso...
Ele sorriu carinhosamente, sem conseguir disfarçar
nele próprio alguma da curiosidade e entusiasmo que ela sentia. Não conseguiu
deixar de se perguntar se a senhora ainda estaria viva. Já tinham passado
tantos anos.
Só teve tempo de gritar enquanto ela se esgueirava
já por entre o rasgão que separava dois tapumes - Não passes da entrada,
ouviste! O prédio está instável. Tens de ficar à porta!. Um «ok» abafado e seco
foi a última coisa que ouviu antes de a ver desaparecer.
Os cinco minutos prometidos pareceram-lhe duas
horas devido à ansiedade dolorosa causa pela preocupação. No fim, preparava-se
já para ir buscá-la lá dentro quando a viu aparecer pela estreita abertura com
um sorriso iluminado e o aspecto de quem tinha acabado de ver não um fantasma,
mas um anjo.
Trazia a máquina em riste, que abanou triunfante
enquanto gritava: "estava lá! tal como descreveste! Só tive tempo de tirar
uma fotografia, aquilo lá dentro é arrepiante." Mostrou-lhe o
resultado no ecrã lcd da sua máquina. Sentiu uma enorme angústia dentro de si,
sem saber porquê.
Observou atentamente a fotografia, que mostrava o
televisor no mesmo exacto sítio onde o tinha deixado, abandonado, anos antes.
Tinha ficado ali, à vista escondida da porta da rua,
escancarada, como se esperasse ainda que o levassem para junto de
Maria. Mas ninguém o tinha vindo buscar. Ficou esquecido, a documentar
um passado apagado e a espelhar no presente o prédio cansado, as paredes
descascadas em camadas de tinta e cal, que, tal como os veios de uma árvore ou
os sedimentos acumulados sob o chão que pisamos, denunciavam a história e
os anos de um mundo acabado. A tinta estalada na parede - que Maria se lembrava
bem de ter visto pintar - caía em lascas pelo soalho, como se chorassem pelo
seu abandono num processo de auto-demolição. Como se o prédio, agora frio e
vazio, soubesse que já não tinha propósito ou razão. Aguardava apenas,
decadente, a sua inevitável destruição.
E Maria, quando viu a fotografia que um dia o casal
lhe mostrou, comovido, também ela chorou, lembrou, a vida e o amor que a
morte e o tempo fez ruir. E por entre os escombros e o pó, protegido pelas
paredes de carne viva, apodrecida e rasgada pelas fissuras que o tempo fez
golpear, jazia aquele aparelho imponente, ainda polido e brilhante, como novo,
por estrear. A guardar e a ser, o presente, que Jorge nunca lhe chegou a dar.
Que ela abandonou e perdeu, mesmo ali naquele primeiro patamar, mas que agora
tinha vindo ter com ela, num gesto de ironia doce do destino, através daquela
fotografia. O primeiro e único registo a cor de um televisor que nunca a
viu, nunca foi nem se acendeu e apenas serviu, calado, para reflectir no seu
ecrã apagado uma vida de solidão. A preto e branco.
Nessa noite, Maria deitou-se com a fotografia entre
a palma e o coração. No escuro absoluto do quarto e dos seus olhos cerrados,
lembrou-se da primeira vez que tinha visto Jorge, do seu casamento, do seu
afago quente em dias de frio, da primeira vez que fizeram amor, dos passeios a
Sintra sob o sol misterioso do Inverno. Dos anos passados sem dor. Dos serões
passados no seu mundo, no seu lar. Nunca tinha deixado de o amar. Sentiu uma
paz imensa. Sentiu o abraço de Jorge ali, deitado a seu lado, como costumava
fazer, a envolvê-la até o dia nascer. Dormiu, recordou, sonhou, chorou,
sorriu.
E já não acordou.
Fim
Texto : José Anjos
Fotografia : Estelle Valente
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