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Era a grande noite da
tempestade.
Talvez tenha sido o único a vê-lo, entre os brilhos baços das vidas ao abandono. Saiu da multidão como um náufrago é expulso pela maré que o lança na praia, o balcão uma ilha desejada. Desajeitado como todos os perdedores, acendeu um cigarro e quase sussurrou o pedido de uma cerveja.
Talvez tenha sido o único a vê-lo, entre os brilhos baços das vidas ao abandono. Saiu da multidão como um náufrago é expulso pela maré que o lança na praia, o balcão uma ilha desejada. Desajeitado como todos os perdedores, acendeu um cigarro e quase sussurrou o pedido de uma cerveja.
Depois olhou em
volta. Ao longe conseguia perceber-lhe no olhar o desespero manso de quem vê em
todos os desconhecidos a solução das mais secretas angústias. Lembrei-me
estupidamente de uma frase de um livro antigo que já não suporto: “No meio da
multidão há sempre a esperança de um rosto”, aforismo desbotado e incómodo mas
que com surpresa verifiquei ser verdadeiro. Por isso, quando os nossos olhares
se cruzaram senti uma espécie de reencontro. Com passo lento dirigiu-se a mim e
a sua voz baixa mas grave destacou-se inesperadamente do pandemónio musical que
lhe servia de cenário:
«Dói, não dói?»,
perguntou.
«Como? Desculpe,
eu...»
«Dói. Eu sei que dói.
Aquele olhar. Aquele instante.»
«Desculpe, se calhar
conhecemo-nos mas...» balbuciei, agora também eu à deriva.
«Claro que nos
conhecemos. Às vezes. Hoje, sim», respondeu enigmaticamente enquanto acendia
outro cigarro. «Dói, não dói?», repetiu.
Procurei em vão por
sinais de embriaguez ou ausência de sanidade temporária, algo que me garantisse
toda a conversa ser um equívoco. Mas o que conseguia retirar era apenas uma
bizarra sensação de familiaridade, que crescia a cada minuto. Até que, de forma
natural disse
«Dói. Dói muito, em
proporção directa com o tempo que passa. Dói tanto que procuro o maior número
de pessoas na esperança que a dor se dilua, se desfaça entre tantos rostos
felizes. Dói.»
O desconhecido
sorriu, num assentimento triste: «O que custou mais? As últimas palavras? O eco
das vozes que se afastam? O último olhar?»
«O ruído da porta a
fechar-se sobre o meu rosto. O ruído mais definitivo que alguma vez ouvirei.»
«Amava-a muito, eu
sei»
«Muito. Mas como
sabe?»
Sorriu outra vez
enquanto regressava docemente para o balcão, com os olhos de um cúmplice
antigo.
«Sei porque somos o
mesmo. Não iguais: o mesmo.». E desapareceu para sempre entre olhares e
decibéis.
Nunca mais o
encontrei porque também nunca mais o perdi. Da grande tempestade recordo então
a hora clara em que pela primeira vez me conheci.
Texto : Nuno Miguel Guedes
Foto : Estelle Valente
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